Desfaz-se a firme pega.
Ao sinal mais pressentido que combinado, os dedos dela afrouxam levemente e escorregam pelos pulsos enfaixado dele, ele dá um impulso arriscadamente definitivo e lança-a num voo desamparado. Ela arqueia o corpo esguio num gesto aprendido, sentindo um instintivo, mas ignóbil, pânico, inerente a quem troca o toque humano - uma união de punhos, estável, confiante, íntima – pela carícia do vazio.
Por ser humano, o outro companheiro erra – atrasa o instante preciso do lançamento do trapézio – e, por não o ser, o aparelho não consegue emendar o erro – a lasca de tempo permanece erroneamente suspensa, metros a cima da rede esticada junto à pista de areia e serradura. A gravidade, contudo, chama-a a ela, impedindo-lhe de ficar sustida no momento e no ar. Maquinalmente, se bem que não conseguindo a usual perfeição, ela acerta o ritmo já interiorizado, antecipa o instante do impacto e os dedos finos encontram o ferro frio do trapézio oscilante. Entortara-se um pouco trapézio e trapezista - tudo isto escapara aos distantes olhos leigos em baixo na plateia – traçando ambos uma trajectória una até ao suporte.
O arrependido comparsa segura-lhe a barra, suplicando-lhe perdão com o olhar. Entretanto ela faz uma rendilhada vénia, em parte para recuperar o preciso equilíbrio, em parte para suscitar o precioso aplauso do público - a grande maioria olha-a, uma insignificante minoria, diluída nos bancos de madeira, derradeiramente observa-a. Ela nada mais olha ou observa que ele, sentado no segundo trapézio que oscila a um ritmo regular.
(...)
By Sophia
“did someone call my name?
like a distant drum is beating
(...)
To my brilliant feat
they all pay heed,
I hear the crowds roar oh so loudly…
Is it a game of chance
or merely circumstances?“
música: My Brilliant Feat – Colin Hay
Passo os dedos leves sobre o teclado já um tanto antiquado.
No início com uma cadência lenta e pausada. Os dedos começam a acelerar e as ideias a fluir. Os dedos movem-se sozinhos e a mente não pede autorização para despejar tudo o que por ela passa para dentro da máquina. As palavras vão saltando, quase por magia, da imaginação para o ecrã. Já nada interessa, nem o barulho da rua, nem os sussurros dos vizinhos ou o próprio quarto quente.
Perco a noção do tempo e até do lugar. Movo-me duma forma quase ritual para um outro mundo, uma nova galáxia ou dimensão, onde o tempo não passa e o espaço não pára de mudar num turbilhão. Esse mundo só meu, precioso e pessoal, onde me escondo na penumbra e desabafo todo o que penso, tudo o que sou – o que sei e o que não sei ser. Deixo-o sempre trancado e bem selado, mas sou traída por os meus dedos que escorrem sobre as teclas duras e abrem uma pequena janela, uma fenda estreita, para esse lugar tão meu.
De repente acordo do transe e olho o texto, não me atrevo a lê-lo logo, sob pena de não ter coragem de o guardar. Tenho de ir, o outro mundo mais frio chama. Levanto-me e saio, mas continuo entre dois mundos o resto da tarde a pensar o quão perigosa é a escrita, de que forma subtil nos arranca segredos e revela o que somos mesmo quando não é essa a nossa intenção. De que forma uma simples história ou um inocente poema expõem o seu autor e abrem brechas para o seu pequeno refúgio, numa indecente exibição da nossa tão privada alma.
(Eis um texto perdido que não foi encontrado, mas que a mim me encontrou. Não sei ao certo há quantos anos o escrevi, ao que não posso negar a certeza é ao facto de ainda se continuar a passar o mesmo cada vez que escrevo algo, deixando tantas vezes notas soltas fechadas em gavetas, separando as palavras outrora agregadas em mil pedaços de papel ou, como com este se sucedeu, deixando textos perdidos nas mais recônditas profundezas do disco do meu computador. Fica a dúvida se me deveria ter escondido melhor... se não devia guardar também a alma numa gaveta antes que se desagrege em mil leves pedaços e se perca)
by Sophia
"In you and I,
There's a new land,
Angels in flight
I need more affection than you know
My Sanctuary,
My Sanctuary, yeah
Where fears and lies melt away..."
música: Santuary (english version) (from the game "Kingdom Hearts II") - Utada Hikaru
...this is my world
___________________________________________________
Sometimes it's just too hard to feel it,
Sometimes it's just too hard to understand it...
But we shall never ignore it...
The other's pain.
___________________________________________________
That's why I'm saying:
This is my moon, this is my world.
Do you understand?
I don't care...
by Lucya
Faz meses que recebi uma carta,
Sem remetente,
Sem destinatário.
Senti que a carta era destinada a mim e recusei-me a abri-la .
Guardei-a numa gaveta,
Mas no fundo
Sabia,
Sempre soube que a teria que abrir.
Os dias passaram-se e fiz por esquecê-la.
Talvez a esperança me tenha cegado,
Talvez quisesse evitar a dor.
Quanto mais tarde pior e agora estou a pagar por isso.
Ontem abri a carta,
Simplesmente vazia,
A carta, para meu espanto (ou talvez não), estava em branco.
Um vazio invadiu o meu peito e tudo à minha volta desapareceu.
Olhei-a durante infinitos minutos e,
A pouco e pouco,
As letras começaram a surgir,
Não consegui evitar,
Juro que não.
Guardei-a algures em mim,
Junto do coração.
O mal já estava feito, a carta havia sido lida.
Frente a frente,
Olhos nos olhos.
Não consigo evitar, acredita.
Salgada a água que invade os meus olhos e me turva a visão.
Podia ter sido outra pessoa para ti,
Poderia ter evitado muitas coisas,
Podia ter-te dado toda a atenção que merecias
E corresponder todo o afecto que me fornecias.
Sem ti jamais teria sido capaz,
Sempre estiveste por perto quando mais precisei,
Foste aquele a quem abracei sem pudor.
Contigo chorei mil e uma lagrimas,
E agora, por ti,
Outras mil.
Só de olhar para ti e ver que estás a sofrer mata-me,
Dói demais.
A decisão é dificil,
Tu sabes que sim.
Se eu pudesse fazer,
Fosse o que fosse,
Para te ajudar,
Ajudando-me a mim,
Acredita que o faria.
Só te peço que me desculpes,
Não sou forte para te segurar
E impedir de partir.
Já não está mais nas minhas mãos,
O mal está feito.
Perdoa-me...
by Lucya
"Another colour turns to grey
And it 's just too hard to watch it all
Slowly fade away "
Acordei sobressaltada já a noite tinha deixado de ser menina. O coração batia audivelmente, a caixa torácica arfava, os lençóis de algodão estavam remexidos, suores frios escoavam-se pelos esporos. Reparei que não respirava desde o sobressalto que me tinha tirado todo o ar dos pulmões, à força como uma pancada seca nas costas, fi-lo e senti um arrepio por toda a espinha, percorrendo cada uma das sessões da base da coluna até ao cervix.
Virei-me de lado, abracei-me, cerrei as pálpebras com força e concentrei-me em adormecer, focando a minha atenção, a minha mente, o meu ser só nesse acto, nesta tarefa, nesta acção. Permaneci estática e contraída, gelei por completo, despertei todo o corpo, fiquei em vigília, chamei uma persistente dor-de-cabeça - mal dormi.
Ao amanhecer tomei um duche demasiado longo, demasiado quente, demasiado ausente. Sei que me estou a atormentar ao tentar encher o consciente com tarefas inconscientes, sei que ainda estou sobressaltada, mas nego-o. Nego-o pois bastaria isso para não resistir a procurar no meu próprio cabelo - agora esfregado, lavado, enxaguado de forma quase obsessiva - uma réstia do reconfortante cheiro que senti naquele instante ao acordar e que me sobressaltou, o perfume dos teus dedos finos há tanto ausentes, deixado como se tivesses realmente estado deitado comigo na escuridão do quarto, a brincar com as minhas ondas de cabelo caoticamente espalhadas pela almofada. Nego-o, mas não deixo de estar sobressaltada, nem sequer de instintivamente saber que o senti, que foi tua a fragrância que ficou como despojo dum sonho - mesmo que nunca os tenha...
by Sophia
"Just hold me tight and tell me you’ll miss me
While I’m alone and blue as can be
Dream a little dream"
“Acorda…” - aconselha-me a primeira.
Eu não estava a dormir… Olho-as por um segundo, conversam sem a minha ajuda. Volto a olhar o nada e vejo-me cercada de tudo. Não quer dizer que tudo muito seja, aliás ficava eu a cismar o quão pouco a minha vida é, no conteúdo escasso e no sentido inexistente. Isolo-me e sinto-me só.
“Acorda.” - diz-me a segunda.
Eu não estava a dormir. Oiço-as por um minuto, conversam sem que eu faça falta. Volto a ouvir a minha alma e sinto um silêncio profundo dentro de mim. Pretendo calar o seu eco com um alto e inaudível grito, ele reverbera por toda ela sem um som. Isolo-me e sinto-me só.
“Acorda!” - ordena-me a terceira.
Eu não estava a dormir! Acompanho-as pelas horas que mais fico, conversam sem que me interesse. Contudo não volto a olhar o nada e a ouvir a alma. O nada e o silêncio foram-se e eu insiro-me na conversa sem fim. Ninguém me manda acordar, só eu reparo que tudo isto faz a minha mente entorpecer, entrar em letargia, adormecer. Não me isolo e sinto-me mais só que nunca.
By Sophia
"A sad and lonesome me.
I'm the walking wounded
And I'd say it to your face
But I can't find my place.
So tell me now, what more do you need?"
Somos feitos da matéria dos sonhos...
... que se espumam inutilmente ao acordar.
Somos pó das estrelas...
... que estão demasiado altas para poderem ver a realidade nitidamente.
Somos aqueles que toda a vida sonham alcançar as estrelas...
... e que, quando descobrem que, em vida, não o conseguirão nunca, esperam que o óbolo chegue para que a barca de Caronte os leve além do rio Estige e providencie a viagem.
”I could feel myself growing colder
I could feel myself under your fate
Under your fate
It was you breathless and tall
I could feel my eyes turning into dust
And two strangers turning into dust
Turning into dust”
Via-me eu, sem saber ao certo como tinha obtido a autorização, no Porto com um grupo de estudantes de secundário que mal conhecia, perdidos no meio do Hospital São João, talvez com orgulho confundidos com caloiros de medicina, sabendo em pânico que a nossa orientadora de estágio iria perder a paciência se não conseguíssemos encontrar o pequeno corredor que dava para o fantástico laboratório, rezando com pouca sinceridade que conseguíssemos evitar caves, salas de exames e morgues, quando recebi a mensagem da minha adorada Ana M. na minha mais adorada Lisboa:
“Tivemos a ideia de criarmos um blog de nós as 4 onde púnhamos music vídeos, o que escrevemos. Para já não se preocupem com o resto. Eu e Lucy precisamos é de ideias para nomes. Tipo holla back girls, mas a Tete não deve alinhar nesse”
Foram-se mudando dum nome para outro, enquanto eu me ia aventurando com as pipetas, microscópios e máquinas de corte e ia atrasando o trabalho de médicos e biólogos com dúvidas e questões. Quase uma semana depois da mensagem, há exactamente seis meses atrás, ainda estava eu e a Teresa na longínqua cidade invicta, foi publicado o nosso primeiríssimo post. A Ana M. foi pioneira e escreveu:
“ Sete anos. Meio dia dos dois dias que a vida é. Sorrimos, Tropeçámos, Caímos, Chorámos, Vivemos. Subimos degraus íngremes. Galgámos montes e colinas. Corremos muito, mas mesmo assim tão pouco. Tão pouco de entre o pouco que espero continuemos a correr juntas durante, pelo menos, mais um dia. “
Agora, depois de muitos desabafos condensados, letras precipitadas em energéticos jactos, filosofias solidificadas e ainda vários blocos de ideias por fundir, é a minha vez:
By Sophia
"Where as you watch the hour snow
Years may go by
So hold on to your special friend"
Recebemos uma prendinha do nosso amigo V.A.D. que nos convidou a escrevermos um texto, com mais ou menos sentido, mais ou menos coerente, onde estivessem presentes os títulos do nossos últimos dez posts. Deixou-nos a nós a tarefa de decidir a quem caberia a tarefa e acabou por calhar à que primeiro viu o embrulho – eu.
Não digo que seja envenenada, mas pelo menos foi uma prenda muito inesperada, bastante divertida e, a cima de tudo, complicada de desembrulhar! No entanto adorei, até certo ponto fez-me sentir uma derradeira Pandora, se bem que tenha esperança que as consequências não sejam tão desastrosas como as no mito.
Aqui ficam os nossos autênticos agradecimentos e uma história um tanto aldrabada, que de autêntica só tem o tango (e, que embora não esteja de certo envenenada, não garantimos que não seja entediante):
Hoje foi um dia especial, hoje comecei de novo, hoje cravei-te um punhal no coração, bem fundo entre as costelas, enquanto te olhava nos olhos.
Entro pela porta, decidida, segura, convicta. O lugar não é novo (Ah, quantas vezes aqui vim..), nem a resolução (Ah, quantas vezes já evitei o inevitável...). Inspiro fundo uma vez para não perder a coragem, cerro os olhos por um momento, começa uma música a encher o ar, só um murmúrio de violinos. Abro os olhos. Procuro o velho rádio verdejante com o relógio verde, ele também, vejo que são exactamente três horas, mas não vejo qual a frequência na qual se começa a distinguir um insípido tango. Foco o número da perfeição e a música da sedução, mas evito os teus olhos esverdeados que me focam. Perguntas que se passa, eu respondo: acuso-te, insulto-te, ataco-te com a mais aguçadas palavras.
Enquanto o gume afiado ia penetrando lenta e profundamente nesse teu peito onde outrora repousei a cabeça, senti uma certeza fria a subir-me pela espinha, a arrepiar-me outrora só tu conseguias. Vejo que não posso abdicar de ser quem sou por ti, que o rompimento era eminente, que não havia retorno. Seguro com mais força o cabo, torcendo a lâmina, girando-a com força, sentindo prazer em sentir a tua pulsação que faz tremer o punhal.
Está quase meu amado, basta enterrar um pouco mais, uns centímetros, uns instantes, umas notas no violão. Enfrento o teu olhar e nada vejo, nada te espanta, nada te encanta, nada te fere, ficas indiferente. Quem treme agora é a minha mão que segura o punhal, é a mim que ele fere. Esvaio-me em sangue, mas recuso esvair-me em lágrimas. Deixo cair o punhal. O acordeão já se havia calado, já passava um pouco das três, já não havia nada mais a ser dito.
Saio pela porta, derrotada, magoada, agonizante. Um solitário floco de neve cai sobre a lapela do casaco e desfaz-se imediatamente numa gota de água. Eu sinto-me só e os meus olhos desfazem-se imediatamente numa torrente de lágrimas. Lá dentro deixei o punhal e tudo o que passámos. Cá fora, caiem mais alguns flocos e lágrimas que se confundem. Continuo em frente, tentando inutilmente convencer-me d’a efemeridade do eterno sentimento.
By Sophia
“¡Locos! ¡Locos! ¡Locos!
¡Loco él y loca yo!”
Só te peço que me leves...
Não quero saber o que me prometes, o que me farás, o que pedirás em troca. Simplesmente quero que me ajudes na fuga... Sê meu raptor, meu assassino, meu carrasco. Sê meu escapatório, meu cúmplice, meu amante. Podes dar-me conforto ou impedires-me de sentir o que quer que seja, podes aquecer-me com o teu calor ou roubar o meu até que o pouco que tenho me abandone, podes esclarecer todas as minhas questões ou impedir-me de procurar as respostas. Não quero saber, não me importo, não quero pensar nisso... nem sequer sei qual a escolha melhor. Escolhe por mim, faz o que puderes, faz o que quiseres. A escolha que me interessava tomar já está tomada: quero partir, quero afastar-me, quero deixar tudo para trás.
“Só sei que nada sei” dizia o filósofo e ele foi julgado e executado por isso. Eu nem filósofa sou e só sei que quero a execução... dispenso o julgamento, declaro-me culpada, desertora, covarde. Não me interessa qual a acusação, só quero que me condenem ao degredo, que me deportem, que me levem para longe...
E se for pior que esta vida? E se não houver nada de todo?
Da primeira sempre posso tentar novamente a fuga e na segunda terei total ausência de sentidos, pensamentos, emoções, certamente não me importarei...
Só te peço que me leves...
E já gora que a lâmina da Guilhotina esteja bem afiada, pois tenho pressa em partir.
By Sophia
“Daylight
I must wait for the sunrise
I must think of a new life
And I musn't give in
When the dawn comes
Tonight will be a memory too
And a new day will begin”
. Is it Still "The Beginnin...
. Antiquitera (XIV) - Epílo...