Segunda-feira, 31 de Março de 2008
Antiquitera (XI)

 

      "A agitação da noite trazia-me uma estranha sensação de esgotamento, a comemoração decorrendo faustosa, músicos e dançarinas entretendo a alta sociedade rhodiana que comparecera em peso, o banquete de peixes variados, saladas, queijos de cabra e carnes de cordeiro sendo regado a esmo com os encorpados vinhos brancos nascidos dos vinhedos que cobriam, vastos, as encostas de Attaviros, os finos licores de todas as proveniências inundando de risos soltos e conversas fúteis a atmosfera cálida. Freyja revelava-se em todo o seu esplendor como anfitriã, cavaqueando com os convivas, orientando os servos, providenciando uma festa como poucas haviam sido vistas ao longo da rica história daquela virtuosa e antiga cidade. E, contudo, pela minha mente corria célere o desejo de me furtar à companhia dos que me homenageavam com a sua presença, ansiava escamotear as questões teimosamente assestadas, as minhas pesquisas e trabalhos sendo o mote preferido de todos os que se me dirigiam. Queria, acima de tudo, poder analisar o assombroso objecto que apenas pudera entrever sucintamente, um disco de bronze graduado no bordo, um anel de suspensão para a verticalidade e uma mediclina formando o admirável mecanismo contido na caixa onde, artisticamente, uma goiva reproduzira fabulosos seres marinhos. O valioso presente oferecido pela mulher a quem me encontrava ligado por laços inusitadamente tenazes serviria, segundo me havia dito, para a medição a altura dos astros acima do horizonte, podendo ajudar na navegação marítima ou resolver problemas geométricos. Quantos conhecimentos se esconderiam dentro daquele abscôndito mundo de mistério que parecia ser a vida dela…?

    Veio, sentou-se encostada a mim, fez-me esquecer os tormentos e dúvidas que me vinham assolando, o festim findo com a saída do último convidado dando lugar à celebração de uma união espiritual mediante uma entrega física que atravessou a madrugada para cessar apenas aos primeiros raios do novo dia. Dormimos, extenuados, a manhã passando por nós sem que disso déssemos conta, a canícula despertando-nos já tarde adentro. Uma ideia, provavelmente resultante de algum sonho evanescente, instilara-se, fixa na minha cabeça. Hoje, Freyja teria de se me mostrar por inteiro, ou deixá-la-ia... Se fosse capaz…”

 

        V.A.D.

 

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Astrolábio (http://plato.if.usp.br/1-2003/fmt0405d/medievo/islam/astrolabio2.jpg)

 

 
“Tenho um astrolábio
Que me deram beduínos
P’ra medir no firmamento
Os teus olhos astralinos…”

 
Bairro do Oriente (Rui Veloso)

 (http://youtube.com/watch?v=kbtosNkiLP4



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Domingo, 30 de Março de 2008
Antiquitera (X)

 

    "O Sol ia-se recolhendo para lá do remoto horizonte, onde os marinheiros lhe confiavam a sua vital orientação, a inclinação dos últimos raios do dia acentuando-se para lá do corrupio do porto, entrando num feixe que se estreitava pela janela ocidental da espaçosa sala, desenhando anárquicos padrões nos grânulos cristalinos do mármore do pavimento, pintando em tons de laranja o fino perfil das partículas em suspensão no ar e reflectindo-se nas novas curvas e contracurvas que iam surgindo pela minha mão, na estreita superfície dum pequeno ponteiro. Por uma tarefa que, como solitário propósito, tinha o adiamento duma inevitável conclusão que o meu íntimo repudiava, os movimentos delicados da aguçada ponta em bisel do elegante buril deixavam adivinhar na prata a silhueta duma lua nos braços de Selene, como já se delineara o esboço dum sol seguro por Hélio sobre a cabeça e como se iria traçar outra elaborada figura na platina do terceiro ponteiro do mostrador principal do engenho. A falta de luminosidade fez-me pousar o trabalho. Levantei-me e dirigi-me a um estreito armário de madeira nubiana que abri com a ajuda de uma minúscula chave de ferro trazida dos orientes e sempre mantida escondida nas abas do manto. Forrada por papiros e algumas tabuinhas, destacava-se ao lusco-fusco uma caixa de madeira, nos veios da qual se imortalizara um bélico bailado de monstros marinhos e uma pequena bolsa de linho tingido a carmesim. Hesitando por um instante em que ia escurecendo, deixei cair para a palma aberta, num único gesto, o anel guardado no tecido. Distraí-me com peso do gélido metal, fazendo-o girar por entre os dedos, um antigo hábito regressando, reflexivo. Tremi com fardo das revelações inscritas, a imensa carga que me fez trocar o seu familiar toque pelo humano.

    Ao som abafado das solas dum par de sandálias a descer pelos degraus da imponente escadaria que conduzia ao quarto, peguei na caixa, larguei o anel que ressoa acusadoramente na prateleira de cedro e fecha bruscamente as portadas cobertas de desenhos egípcios. O denso cheiro de cera e resina duma vela que transportava denunciou a chegada de Hiparco. Desatei a fita de cetim negro com que prendia o cabelo para trabalhar e virei-me, segurando nos braços a prenda para o homem por quem tão inconvenientemente me havia acabado por apaixonar.

 

         by Sophia

 

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Anel (www.ancient-bulgaria.com/images/ring.jpg)
 

 
“And when the day has all but ended
And our echo starts to fade
No you will not be alone then”

 
música: Now comes the night – Rob Thomas
  (
http://youtube.com/watch?v=BqMY9mMMJKU)



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Sábado, 29 de Março de 2008
Antiquitera (IX)

 

   “O crepúsculo descia, sublime, sobre os pedestais que tinham suportado o Colosso de bronze, agora meio submerso, derrubado haviam já quase sete décadas por um terrível terramoto, o mármore resplendoroso erguendo-se mais de uma vintena de côvados acima das águas da preia-mar, as sombras alongando-se, coleantes, por sobre a ondulação pouco cavada do mar Egeu. Mandraki apresentava-se na azáfama característica de todos os portos, a distância dissimulando a algazarra mas não escondendo a fervência de um comércio marítimo que tinha ainda em Rhodes um dos seus principais empórios. Sentado sob os últimos raios solares daquele dia em que completara trinta e três anos, os meus olhos vagueavam pelas veracidades do presente enquanto os meus pensamentos se imiscuíam num futuro que se me afigurava insidiosamente indistinto, Freyja aparentando um desassossego feito de mistério que se ampliava de dia para dia. O maquinismo tomava forma, cada roda dentada resultando de demoradas observações e de extenuantes cálculos, a matemática nova a que chamávamos de trigonometria sendo desenvolvida à medida das exigências. As posições do Sol e da Lua podiam já ser representadas no Zodíaco, o calendário de trezentos e sessenta e cinco dias, ajustável para os anos bissextos, funcionando como referencial. Prontas estavam também as engrenagens que interpretariam, por intermédio de ponteiros, as posições de Marte e Vénus. Ela prometera-me desvendar todos os enigmas da sua existência assim que conseguisse predizer o alinhamento dos planetas, e os meus receios emergiam paulatinamente, intraduzíveis mas incisivos, a antecipação da hora da verdade aduzindo uma inquietude que tentava negar pela voracidade a que me devotava aos prazeres carnais, sublimemente propiciados por aquela mulher a quem me entregara totalmente, sem questionamentos…”

 

V.A.D.

 

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Alinhamento Planetário (www.solarvoyager.com/images/art/Alignment%20by%20Frank%20Hettick.jpg)
 

E já agora... muitos parabéns ao senhor que hoje, a milénios de distãncia

 deste crepúsculo, também comemora o seu aniversário.



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Sexta-feira, 28 de Março de 2008
Antiquitera (VIII)

      “Rendi-me ao veludo do toque dos primeiros raios da aurora e à doçura da pele de Hiparco. As palmas das suas mãos foram descendo tacteantes pelos meus antebraços, estreitando ainda mais o aperto, aumentado a pressão insinuante do meu corpo nas suas costas. Demoradamente dei-lhe um outro beijo sobre a curva do pescoço, ternamente sentindo, sob os lábios, a pulsação que acelerava e a leve vibração das cordas vocais, num cumprimento matutino onde as palavras do dialecto nórdico comicamente se enleavam na sua incorrigível pronúncia grega. Poucas eram as palavras que lhe havia ensinado e ainda menos as histórias que lhe havia contado sobre a minha anterior vida, tendo todas sido pronunciadas ainda nos últimos dias sob o sol de Rá. Ele cumpria o acordo pronunciado por ambos naquela noite, eu acatava o antigo pacto de silêncio que me pesava mais a cada instante. Eu havia-lhe roubado as horas de luz, invariavelmente passadas no andar de baixo, mergulhando ambos em planos e tabelas, ferramentas e materiais, instrumentos e engenhos, sem lhe dizer para que usaria o mecanismo. Havia-lhe extorquido as de escuridão, repartidas entre o observatório no terraço, estudando os movimentos celestes sem lhe explicar o intuito final, e a cama de dossel, partilhando afectos e desejos sem lhe confessar por quanto tempo mais. Havia-o aproximado da terra que era sua por nascimento, mas furtado-o àquela à qual pertencia, por uma demanda só minha e cuja conclusão penosamente se abeirava.

    Sentindo a minha imobilidade, desfez o abraço, girando sobre si mesmo para encarar a confusão do meu olhar que eu via espelhada no dele. Passou a mão pelos meus cabelos e uniu os seus lábios com os meus, ficando sustidas as dúvidas e o tempo, enquanto, no remoto horizonte, Hélios não afrouxava as rédeas do seu carro e paulatinamente cobria de luz a cidade de Rhodes da mesma forma de havia coberto de carícias a mulher que lhe dera o nome...”

 

    by Sophia 

  

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Abraço  (original em http://www.lovelydaniel.com/UserFiles/2007/4/18/47040_375x375.jpg)

 

 
“I could spend my life in this sweet surrender

I could stay lost in this moment forever”

 
Música: I don’t want to miss a thing – Aerosmith

(http://youtube.com/watch?v=0sbQ0hqH9ZU)

 



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Quinta-feira, 27 de Março de 2008
Antiquitera (VII)

 

Segunda Parte

  

 
     “A alvorada anunciou-se resplandecente, os raios solares entrando pela janela entreaberta, a alvura das paredes caiadas reflectindo-os para encher de luz o quarto amplo, o despertar fazendo-se suave e demoradamente numa indolência tão aprazível quanto lasciva fora a noite. Levantei-me, o lençol de linho que me cobria sendo cuidadosamente afastado para a não acordar, a frescura do chão de mármore causando-me um arrepio que me percorreu todo o corpo, num terminante afastamento da sonolência que ainda me envolvia. Dirigi-me à varanda virada a oeste; o ar matinal ainda fresco e a magnífica serenidade azul do Mediterrâneo estendendo-se ante os meus olhos, tinham sempre o condão de me fazer sentir esfomeadamente revigorado. Antes da refeição da manhã, precedendo ainda o despertar daquela incrível mulher que me havia alterado a vida, deixei que as memórias me transportassem a Alexandria e à Biblioteca por onde me perdera entre centenas de milhar de rolos. Permiti que desfilassem mansas, as intensas recordações de um tempo cheio de aprendizagens e de ensinamentos, de teorias e de ensaios, de medições e de observações astronómicas, e contudo tão tremendamente incompleto. Debrucei-me sobre o parapeito, cerrei as pálpebras e revi-me naquela noite de há já três anos, escutando outra vez a pergunta a que respondi com uma peremptória afirmativa, Freyja exercendo sobre mim uma magia que não mais se desvaneceu, querendo saber se deixaria tudo para com ela partir para Rhodes, a premência de dar forma e vida a uma máquina manifestando-se na urgência do pedido.

     Voltei ao presente, o toque suave da sua pele envolvendo o meu tronco desnudo num abraço repentino, os seus lábios beijando-me o ombro, o veludo macio da sua voz deixando-me absolutamente extasiado…”

  

V.A.D.

    

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Rhodes (www.thegreektravel.com/rhodes/photos.html)

 

 

 

"(...) we forget
there's so much life
as morning comes"

 
música: When morning Comes - dishwalla

(http://youtube.com/watch?v=P8EMMkdqBMU)



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Sábado, 22 de Março de 2008
Antiquitera (VI)

 

       “Entre um anel marejado de inscrições, apertava, sob a mesa de pedra, o lenço perfumado com flor-de-lis, numa raiva mal contida por ter mostrado fragilidade, por ter violado a distância que deveria ter mantido com aquele homem de braços atordoantemente quentes. Fingindo uma insólita concentração na tâmara que levava à boca, observava-o. Vendo-o a olhar fixamente as linhas de carvão tentava não abrir uma janela para a sua alma, mas para a imagem que ele construía, engrenagem a engrenagem, na sua mente. Vendo-o a morder o lábio inferior rubro era fácil imaginar as mais de três dezenas de roldanas a girarem umas sobre as outras com um tinido metálico que ecoava pelo seu entendimento, os milhares de dentes a encaixarem numa perfeição talhada num imaterial bronze, o trabalhado desenho dos ponteiros a moverem-se no quarteto de mostradores a cadências matematicamente precisas. Vendo-o a criar uma expressiva ruga na testa adivinhava que tentava deslindar a função do engenho esboçado pelo meu pulso que havia intencionalmente omitido medições, legendas e pormenores. Transferi a minha atenção para a abobada celeste cujo brilho das estrelas não era nem perturbado pela ira do nórdico Thor, nem sequer ofuscado pelo usual astro nocturno do egípcio Thot que hoje mostrava o seu lado negro. Porquanto, o firmamento era o cúmplice que ali partilhava os segredos do maravilhoso mecanismo.

     Hiparco continuava a passar os dedos pelas fibras do papel, deixando as pontas seguir os sulcos das delicadas curvas que eu havia traçado com o movimento demasiadamente carregado. Ela fazia-o com a lentidão de dama que borda um véu de linho, com a perícia de escultor que examina um alto-relevo dum túmulo de faraó, com o afecto de homem que afaga as harmoniosas curvas duma mulher. O pensamento das suas mãos numa carícia pela minha pele nua causou-me um arrepio por todo o corpo, reprimi-o e agarrei ainda com mais força o lenço por baixo da mesa. Só então, ainda sentido a textura suavemente adocicada da tâmara nos lábios húmidos, fiz a pergunta que me havia levado àquela quente noite egípcia...”

 

 

     By Sophia  

 

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Mecanismo (II) (www.bilbaoblogs.com/res/escepticos/Antiquitera.jpg)

 

 

  
“And the night came on
It was very calm
I wanted the night to go on and on

We were (…) in Egypt”

música: Night come on – Leonard Cohen (http://youtube.com/watch?v=Of767QsIMt4)
 

 

 

Fim da Primeira Parte

(Por ausência de um dos intervenientes na parceria,

o conto será retomado assim que possível)

  



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Sexta-feira, 21 de Março de 2008
Antiquitera (V)

 

“A refeição foi frugal, as ostras e os peixes, as aves e as variadas carnes de caça soberbamente apaladadas sendo apenas provadas, numa inventada justificação para cada momento com Freyja, a sua presença parecendo libertar-me da necessidade de alimento, a sua voz serenamente feminina e simultaneamente firme envolvendo-me num universo tão dissemelhante daquele em que sempre havia vivido, os demorados gelos e os tumultuosos mares setentrionais descritos com perícia, as imagens formando-se na minha mente como se estivesse perante a magnitude de tais cenários. Falou-me de um tempo em que a sua estirpe governava o cume do mundo, dos dias em que a primavera fugia para norte, a neve transfigurando-se na água que enchia os rios, os botões explodindo em folhas e flores num ciclo interminável de renascimento da vida, um indescritível sorriso iluminando-lhe o rosto, a sua beleza ou o vinho fazendo-me sentir um estranho ruborizar das faces, um fascínio indizível despontando em mim…

As horas entravam noite adentro, os figos e as nozes acompanhando o hidromel bebericado entre frases e descrições, o semblante subitamente carregado, os olhos marejando-se-lhe de lágrimas, a recordação de uma violenta batalha entre potestades fazendo-a irromper em soluços. O Ragnarok havia posto cobro à influência da sua família e determinado o seu exílio em terras mais meridionais. Num impulso incontido, abracei-a, o toque fazendo-a acalmar-se de imediato. Recompondo-se, limpou com um fino lenço de linho as lágrimas que pareceram gotas de ouro, certamente a luz amarelada dos archotes criando uma ilusão. Desenrolou o papiro que havia trazido. Nele, insuspeitáveis conhecimentos apareciam desenhados com geométrica precisão…”

 

    V.A.D.

 

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Mecanismo (www.ams.org/images/smallgears.gif)



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Quinta-feira, 20 de Março de 2008
Antiquitera (IV)

  

" Mais do que a cascata dourada que me caía sobre os ombros e que a candura da pele que os cobria, nesta “Pérola do Mediterrâneo” onde as tranças de reflexos lápis-lazúli das sacerdotisas do templo se enleavam nas alvas madeixas de frágil seda dos anciãos ou na tisnada musculatura dos escravos de negra carapinha, o que mais fazia virar os rostos de mil etnias em minha direcção era a cadência do andar. Ao lado daquele homem, quase um estranho, serpenteava em movimentos precisos de dançarina por entre a multidão, num passo mais decidido, célere, mais largo do que o apropriado uma dama de bem. Ao ritmo do fluir das pregas da túnica cuja bainha ia flutuando livremente, subindo um pouco além da decência, fluíam as conversas plenas de trivialidades, suplantando a necessidade do mais rigoroso secretismo, a suprema urgência dos assuntos de que fora feita guardiã. A ele contei-lhe que viera de Rhodes, cidade cuja grandeza havia decaído há séculos com o Colosso, tendo trocado há mais anos do que me lembrava o mar Báltico pelo Mediterrâneo. A mim confiou-me qual o trabalho que lhe consumia as horas por entre as numerosas estantes também mandadas erguer por Ptolomeu, sem saber que o havia seguido de perto por sete sóis. Preparava-me para virar a astral, quando me segurou veementemente um pulso, misturando-se o toque frio da prata e o rugoso do âmbar da pulseira com o quente dos seus dedos macios de escriba. Disse-me que o ocaso passara, prometeu-me que iríamos à Biblioteca na aurora seguinte, convidou-me para partilhar com ele a refeição naquela noite de lua nova. Consenti e virei então as costas à mais brilhante estrela que já subira ao firmamento egípcio, Souped, a chegada de Ísis anunciada por uma resplandecência que era contudo insuficiente para distinguir tom de cabelo ou pele e muito menos para iluminar os mistérios enrolados na vareta de marfim que transportava...."

  

      By Sophia 

  

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Freyja e Hiparco   (  http://fotos.sapo.pt/yw0ulyONuLNHOMmJ3BH9/)

   

 

“Strangers in the night, two lonely people
We were strangers in the night
Up to the moment
When we said our first hello.”

   

música: Strangers in the night – Frank Sinatra   (http://youtube.com/watch?v=LAEQzVv_Itc)  



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Terça-feira, 18 de Março de 2008
Antiquitera (III)

 

   “Os meus olhos perscrutavam a multidão ainda fervilhante de actividade, homens a carregar e a descarregar, a consertar e a preparar, a levar e a trazer, condutores de burros acarretando a lenha que se transformaria no fogo luminoso, um chicote a precipitar-se sobre as espaldas de um escravo que laborava com a lentidão indesejada pelo amo, o rumor cacofónico rolando ao meu encontro numa mescla de conversas e risos, de gritos e regateios, de relinchos e de bater de cascos naquele chão que Alexandre mandara empedrar. Por todo o lado se viam mercadores, as suas roupas ostentadoras de riqueza, as cores vibrantes contrastando com a tez escurecida pelo sol dos que apenas usavam tangas ou ofuscando os cafetãs desbotados e remendados dos marinheiros e caceteiros das docas. Avultando-se, esbelta e alva, os cabelos de um inaudito amarelo doirado, a estrangeira estendia um braço desnudo em minha direcção, num aceno de uma candura incomparável. Inexplicavelmente, uma espécie de hipnose tomou-me por completo, os ruídos silenciando-se misteriosamente, a minha vista fixando-se na profundidade azul daqueles lúzios impossíveis. Expulsando da mente o abalo, dirigi-me a ela, os passos inseguros disfarçados pelo cumprimento que lhe dirigi em grego, uma vénia correspondida pelo curvar airoso do seu corpo jovem, a clareza e perfeição da sua voz anunciando-a como Freyja, irmã de Fricka, cunhada de Wotan e princesa da Suécia, a ausência de qualquer indício de sotaque revelando uma extraordinária erudição. Caminhámos ao longo do molhe, ela referindo-se às suas indagações sobre a Biblioteca e sobre o trabalho desenvolvido por mim e pelos meus antecessores, eu questionando-a sobre as indubitáveis peripécias de tão longa viagem…”

 

V.A.D.

 

 

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Eunostos (http://cache02.stormap.sapo.pt/fotostore01/fotos//e8/9b/af/1833813_0Lw2Y.jpeg)

 



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Segunda-feira, 17 de Março de 2008
Antiquitera (II)

  

    “Uma abafada lufada de ar quente arrancou-a do estado de letargia que a ociosa observação das sôfregas movimentações da tripulação dum dahabeeyah que atravessava a primeira comporta do Heptaestádio - com a alvura das velas recolhida num emaranhado de cordas e roldanas - a mergulhara. Os indeléveis traços dum saudosismo inusitado das robustas embarcações que povoam os mares tempestuosos, frios, nórdicos duma primeira infância longínqua dissiparam-se no clima fervilhante do porto. Misturavam-se as gentes numa confusão de linhos, algodões e napa, hibridavam-se os cheiros de cada canto do mundo que se prendiam à pele dos transeuntes, fundiam-se todos os idiomas conhecidos mais os que eram criados ali mesmo na marginal da mais povoada cidade do mundo. Ela, num esforço inaudito para não se dispersar, procurava a figura esguia do brilhante homem letrado cujo nome – Hiparco - havia lido até à exaustão, patente num maravilhoso conjunto de prometedoras obras que a haviam acompanhado nas últimas luas. Tentava ainda a custo repudiar o sentimento de admiração que a poderia distrair da tarefa da qual havia sido incumbida, quando finalmente o viu, de olhos aéreos perscrutando a multidão.

      Arranjou a túnica deixando propositadamente uma das alças escorregar-lhe pelo ombro, desnudando o início dum colo prometedoramente alvo, apertou entre os dedos finos o rolo de papiro que sabia valer mais que a sua vida, sentindo na palma a sua textura reconfortantemente rugosa, e esticou outro braço no sentido do ombro do homem cuja nuca povoada de caracóis negros a fitava, desprendendo-se do frágil gancho, numa outra lufada, uma madeixa quase da cor do sol poente e da chama que tomara o seu lugar no Farol de Alexandria...”

  

                         by Sophia

     

  

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

Imagem: Alexandria

(http://cache01.stormap.sapo.pt/fotostore02/fotos//15/00/8d/1830631_BmZYl.bmp)

  



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Livro Ilegível

 Cada um tem o seu passado fechado em si, tal como um livro que se conhece de cor, livro de que os amigos apenas levam o título

 

Virginia Woolf

Eles não sabem nem sonham muito do que nos vai na alma, metade do que nos aflora o espírito, ou mesmo, parte do que fazemos conscientemente.  Os verdadeiros não nos pedem certezas, apontam-nos ridicularidades, não nos secam as lágrimas e, por vezes, até nos cessam o sorriso.

Porém, os amigos não são, nem devem ser, “leitores” das nossas vidas. Quantos de nós não pensou, fez ou acreditou em algo que os amigos não sabem e não queremos nós que saibam?

Um passado encerra em si muitas páginas, muitos parágrafos, um maior número ainda de pontos de interrogação e, quem dera a nós, que fosse escrito a carvão... Torna-se um livro impossível de ser lido por todos, excepto por nós próprios. Um livro ilegível. O livro ilegível.

Quando partimos restam apenas os títulos, que em jeito de saudosa despedida, eternizarão um estado de graça que é ser.

 

Diz-se que pelos títulos de se vê um livro... Então o meu seria, sem dúvida Fusão - Simetrias da Morte , porque tudo o que faço é vida, e a vida é simétrica à morte.



by Aηα M.



Obs.: A imagem é retirada do último retábulo de uma das mais conhecidas obras da pintura portuguesa quinhentista, atribuída ao pintor Nuno Gonçalves, Os Painéis de São Vicente. O livro, para além de estar nas mãos de uma figura que nos desperta a curiosidade pelo traje negro e expressão austera, é folheado no sentido contrário ao normal e os caracteres nele inscritos embora semelhantes ao hebraico, não são legíveis, o que o torna um verdadeiro fascínio da pintura. Um dia ainda me darei ao trabalho de o tentar decifrar, embora me pareça que não seja bem sucedida...


música: Say goodbye

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Domingo, 16 de Março de 2008
Antiquitera (I)

   

                          Prefácio

 

       Foi há pouco mais de um ano que entrei em contacto com este fabuloso mundo da blogoesfera, que me tem surpreendido de forma muito positiva, seja pela aprazibilidade de alguns lugares que vou descobrindo e visitando com regularidade, seja pela extraordinária qualidade de alguns textos. Os comentários fazem dos blogs lugares abertos, trazendo uma enorme riqueza e complementaridade àquilo que se vai escrevendo. Mas, pode-se ir mais além, as parcerias representando experiências deveras interessantes. Nesse sentido, enderecei um convite à Sophia do Flip Side, para que escrevêssemos um conto. Espero que o resultado seja do agrado de quem gentilmente nos lê…

   

   

  

        “O sol ia baixo, a oeste, descendo sobre os mastros despidos dos navios de grande calado que enchiam o Eunostos de marinheiros e de fazendas de toda a sorte, as riquezas do mundo conhecido sendo comercializadas numa vozearia que enchia de vida um final de dia excessivamente quente, o ar pesado de humidade e fumo causando aquela ténue mas indissipável impressão de desconforto de todas as mediterrânicas tardes estivais. À minha frente, separando o porto mercantil dos arsenais e das guarnições militares, o Heptaestádio estendia-se mar adentro, ligando o continente à ilha onde, havia mais de um século, tinha sido erguida a impressionante obra de Sóstrato de Cnido a mando de Ptolomeu, 300 côvados de altura, sobre a base quadrada de erguendo-se a esbelta torre octogonal, no topo levantando-se um cilindro para uma cúpula aberta onde o fogo que iluminava o farol era mantido noite e dia. Lá no alto, a magnífica estátua de Poseidon velava, infatigável, pela tranquilidade das águas de um azul profundo, o mármore reluzente captando as tonalidades do crepúsculo. Estuguei o passo, o papiro entregue pelo meu secretário referindo o pôr-do-sol como a hora do encontro, a misteriosa assinatura revelando um nome feminino definitivamente estrangeiro, a premência do convite deixando-me a arder de curiosidade…”

 

       V.A.D.

 

 

V.A.D. e Sophia em Antiquitera

 

Imagem: Farol de Alexandria

       (www.tresd1.com.br/Contest/c07-civilizacoes/Pedro-Miguel-Varanda.jpg)

 



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Sábado, 15 de Março de 2008
O Momento do Reencontro (2 de 2)

(...)

 

Sempre, volto à superfície sempre. Não abro logo os olhos. Este mundo invade-me, o Meu deixa-me. Há salpicos, o som entra-me pelo ouvidos, sacode-me a alma, o sol queima-me a pele, deixa a sua marca sem eu o querer, a diferença de temperatura volta, gela-me o sangue. As pálpebras permanecem cerradas. Deixo-me flutuar. A água agita-se reclamando da deslealdade, do abandono, ela como amante traído, eu como fugitiva forçada. As pestanas quedam-se juntas. Não queria sair, quero lá estar e quererei lá permanecer.

Sempre, sempre quererei voltar. Sinto falta daquela solidão reconfortante, desse preenchido vácuo, daquele outro mundo de silêncios e ausências. Toda a calma me fascina, assim imagino a morte. Mas o mundo dos vivos chama-me, domina os sentidos, reclama o meu regresso, exigindo não só o corpo, mas arrancando também a alma. Levo com salpicos da prima, gritos do irmão, risos do tio e com o murmúrios do desconhecido. Passou o momento sem que ninguém, se não eu, reparasse. Debaixo de água sinto que posso deixar o meu corpo para trás, no entanto sinto-me mais eu que nunca. Todavia o momento acaba, é a pior coisa no fascínio do efémero, a imperfeição que dá beleza ao momento. Por enquanto faz-me companhia a nostalgia e conforta-me a esperança dum novo momento do reencontro.

 

Não sou a maior apaixonada pela praia, mas amo o mar.

O momento do reencontro com a água é sempre o mais esperado.

É um instante em que consigo deixar tudo de lado e, no entanto, sentir que nada perdi.

É uma das poucas coisas que me consegue acalmar, que me permite abandonar o pensamento, que me liberta dos aguilhoamentos da vida.

 

Mesmo que seja só por alguns minutos, sinto-me sossegada enquanto cada um dos meus terminais nervosos sente a pressão da água a acariciá-lo, enquanto o peso do meu cabelo negro deixa de estar sobre os meus ombros, enquanto as vozes internas e externas são abafadas pelo elemento.

 

 

By Sophia

 

 

"Life keeps tumbliing yout heart in circles

till you... let go (...)

Now you're out there swimming

Now you're out there spinninng

In the deep... In the deep..."

 

música: In the Deep (Bird York)

    http://youtube.com/watch?v=YbQPxJ10KWs&feature=related

     



publicado por **** às 20:20
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Sexta-feira, 14 de Março de 2008
O momento do reencontro (1 de 2)

   

              Sempre, à primeira custa sempre. Avanço sobre areia e as ondas lambem-me os pés, por vezes mais sôfregas, sem pudor, outras mais pacientemente, com carinho, por vezes quentes, reconfortantes, outras frias, quase desencorajantes, subindo rapidamente, invasoras, ou esperando lentamente que me entregue, desistente. Avanço e sinto-as pelos joelhos. Avanço e acariciam-me nas coxas. Avanço e abraçam-me a cintura. Sustenho a respiração, em parte pela diferença de temperatura, em parte pelo arrebatamento, em parte pela necessidade. Avanço, mergulho e cercam-me.

             Sempre, sofre-se o choque da mudança sempre. O som cessa, o mundo fica turvo perante os meus olhos, a água afaga-me a pele, a temperatura deixa de se sentir, o tempo pára. Dou um impulso  com o corpo, não tenho noção de quanto avanço. Dou um outro impulso, não tenho noção do que se passa à volta. Dou um novo impulso, não teria noção do tempo não fosse a crueldade da selecção natural me ter moldado para um outro elemento.

Sempre, resisto sempre. Agora infantilmente. Dou um bisonho impulso, já não avanço. Não preciso do canto das sereias, o encanto das ninfas ou o chamamento de Poseidon, basta o leve afago das águas para me prender. Dou um inábil impulso, toda a graciosidade se perde. A caixa torácica sobre e desce em vão. Dou um último impulso, este não só bisonho e inábil, mas indesejado, leva-me para fora. Quebra-se a vontade, quebra-se o encanto, quebra-se o coração. No meio da água talvez fique uma lágrima perdida, podendo chamar meu a um pouco do sal do mar.

(...)

                                       By Sophia

 

 

"allora sì che udir potrei

il mare calmo della sera.

nel mio silenzio"

 

música: Il mare calmo della sera - Andrea Bocelli

   http://youtube.com/watch?v=oW_ax3DmPlY



publicado por **** às 12:44
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Segunda-feira, 10 de Março de 2008
A última imagem

   

 

                          By Escher

 

  

Diz-se que a última imagem que uma pessoa vê no momento em que abandona este mundo fica gravada na retina, como se fosse esse o último esforço dela para se agarrar à vida. Todo o corpo se começa a desmoronar, a degradar, mas, se se mantivessem os olhos intactos, este último e derradeiro momento ficaria para sempre guardado.

 

Como seria se pudéssemos revelar essa fotografia? Como seria se pudéssemos vislumbrar a visão com que o morto se despediu deste mundo? Como seria ver o instante em que a morte bate à porta e, no entanto, permanecer vivo?

Certamente muitos assassinos seriam descobertos e muitos inocentes ilibados. Obteríamos imagens que, de outra maneira, ao nos passarem pelos olhos anunciariam a nossa fatal condenação. Satisfaria necessidade e curiosidade. Talvez até conseguíssemos ver o rosto da morte, um retrato nítido e objectivo ou um vislumbre espumado e subjectivo.

 

Só a ideia das nossas células serem as fieis depositárias deste último flash já é fascinante. Em vida elas são constantemente activadas e recuperam só para serem impressionadas pelo estimulo que o instante seguinte lhes oferece. Ao acabar o fornecimento de oxigénio param a tarefa, não havendo essa “recuperação”, parando o momento no exacto ponto em que o tempo chega ao fim. Acaba por ser lógico que esta imagem se eternize como nenhuma outra, não passássemos uma vida inteira só à espera dela.

 

 

                                                                          By Sophia  

 

"MAGGOT

The sure redeeming feature
From that little creature
Is that she's alive (…)

 

BLACK WIDOW
Everybody know that's just a temporary state
Which is cured very quickly when we meet our fate
 
MAGGOT
Who cares?
 
BLACK WIDOW
Unimportant
 
MAGGOT
Overrated
 
BLACK WIDOW
Overblown (...)

 

CORPSE BRIDE

If I touch a burning candle I can feel no pain

In the ice or in the wun it's all the same
Yet I feel my heart is acheing
Though it doesn't beat it's breaking
And the pain here that I feel
Try and tell me it's not real
I know that I am dead
Yet it seems that I still have some tears to shed"

  

 

música: Tears to Shed (from the movie ''Corpse Bride'') - Danny Elfman

   http://youtube.com/watch?v=3z1EALZoIpg



publicado por **** às 23:11
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