Quarta-feira, 2 de Abril de 2008
Antiquitera (XII)

 
     “Por um breve segundo, ecoaram as memórias dum plano antigo que antevira a separação. Ele afastara-se, após haver instalado o par de ponteiros da face inferior e o último trio de engrenagens de triangulares dentes de bronze. Agora, uma gota abatia-se sobre a superfície lisa da água, preenchendo a uma cadência de insuperável precisão o silêncio nervoso que, qual ave agoirenta, pairava sobre nós desde o despertar, já tarde adentro. A cada impacto espalhavam-se novas gotículas pelo recipiente de cobre da clepsidra sobre a qual Hiparco se debruçava, ausente, e a cada instante de intervalo eu sofria com a inquietude dos seus gestos, conservando ainda os dedos sobre o mostrador delineado a pigmento negro no cedro, onde os inertes ponteiros em breve principiariam a sua trajectória de circular perfeição. Simulara, no mecanismo, a posição observada, duas noites atrás, dos planetas cuja trajectória através do firmamento iria ser antecipada, a chave sextavada encaixando na perfeição no veio principal, cuidadosamente facetado. Rodei-a, perdendo a conta das voltas, até os ponteiros encontrarem o alinhamento. O calendário marcava trezentos e vinte e quatro. Esses eram os dias que me separavam do possível fim do exílio.
      Outra gota condensou num momento ímpar aquele ápice em que tomei a decisão. Sem esperar pela seguinte, interrompi o trautear na madeira e levei-o para o jardim de estilo grego. Aí, o timbre da minha voz dispersava-se em explicações sobre a sua intrincada prenda, os seus olhos acompanhando cada oscilação do disco de oito polegadas de diâmetro, a mudez sendo mantida nos seus lábios. Eu adverti-o que só poderia servir-se de parte do delicado instrumento quando o sol desse lugar ao firmamento nocturno e pedi-lhe para suspender o astrolábio pelo anel de metal, na face oposta girei a alidade oca até que um único feixe de luz se projectasse na palma aberta da minha mão e tentei precisar o grau que era indicado na escala. Ele deixou descair o braço ao longo do corpo e desfez o alinhamento do aparelho, fitou-me com uma frieza contundente e disse-me que não suportaria mais os meus segredos, ocultações e enganos. Talvez fosse a hora marcada para a sua partida; contudo, ele mantinha-me presa pelo olhar que veementemente suplicava que não a permitisse. Segurei-lhe os pulsos e sentámo-nos num banco sob a sombra duma árvore, respirei fundo e encostámo-nos para deixar fluir toda a minha história, gota a gota…”

 

                 by Sophia

  

 V.A.D. e Sophia em Antiquitera
Imagem: Mecanismo (III) (
http://eumesmo.nireblog.com/blogs/eumesmo/files/calcuastro2.jpg)

 

 

“Talk to me softly
There's something in your eyes
Don't hang your head in sorrow
(…)
Give me a whisper and give me a sigh”

 

Música: Don’t cry – Guns’n’roses

(http://youtube.com/watch?v=_Ns59Bmqpms)
 

 



publicado por **** às 15:00
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